Em dezembro de 2018, quando Michel Temer ainda habitava o Palácio do Planalto, quando o dólar custava 3,80 reais e “golden shower” era um termo restrito ao submundo da internet, eu e a repórter Bruna Motta nos debruçamos durante quase um mês em uma reportagem especial sobre ansiedade (que pode ser lida aqui) para a primeira edição de VEJA deste ano. Além das conversas com especialistas e personagens, oferecemos uma lista de livros que tratam do assunto; entre eles, a coletânea de crônicas “Depois A Louca Sou Eu”, da escritora Tati Bernardi – uma recomendação minha; já que eu tinha me acabado de rir com as histórias tragicômicas narradas pela autora sobre um tema que eu julgava conhecer o suficiente, não apenas como repórter. A ansiedade, afinal, é uma espécie de configuração de fábrica do século XXI: todo mundo é “um pouco ansioso”, “um pouco acelerado”, um pouco alguma coisa. Eu só pensava demais nas coisas. Tudo estava sob controle.

E aí veio 2019. E entre a leitora que se divertiu despretensiosamente com as crônicas do livro e a jornalista que se sentou em frente à tela do cinema, passou-se um ano que parece ter durado duas décadas – marcado por fortes emoções e algumas visitas a um médico psiquiatra. Nesse ínterim, “Depois a Louca Sou Eu” virou filme e, semana passada, entrou no circuito do Festival do Rio. Na noite deste domingo, entrei no cinema imaginando qual seria meu grau de identificação com a protagonista, doze meses depois de conhecê-la nas páginas. De antemão, vale uma colocação (para usar o termo da moda) do meu “lugar de fala”. O filme mostra de maneira bem explícita – ressalte-se aqui a excelente interpretação da atriz Débora Falabella – algumas situações típicas a quem apresenta os sintomas mais agudos do transtorno de ansiedade, quiçá beirando o pânico (vale ressaltar que o diagnóstico destes e outras transtornos mentais requer cuidado). Eu, por exemplo, nunca deixei de andar de avião, não tenho problema com lugares fechados e nem passei horas no banheiro sufocando. O que não me impediu, contudo, de compartilhar em algum nível a aflição da publicitária Dani (a personagem principal) em vários momentos da história; cuja riqueza está, justamente, na variedade de situações retratadas.

Em uma sala com cerca de 30 pessoas, de jovens a idosos, o comentário que se ouvia a cada cena do filme era: “nossa, esse sou eu”. A personagem começa a planejar uma viagem já imaginando todos os piores cenários possíveis? “Caramba, eu faço isso”, de um lado. Tentativa de cura com benzedeira, constelação familiar, abraço na árvore e yoga? “Aí, Fulana, essa é você”, no outro. A coitada da Dani leva uma bronca em um dia ruim e é tomada de assalto por todas as memórias desagradáveis que consegue acessar, culminando em uma corrida desenfreada e sem fôlego pelas ruas? Silêncio na sala. A moça à minha esquerda respirava alto. Percebi que me sentia angustiada também. Dani, afinal, me lembrou a jornalista que, no começo do ano, não conseguiu cumprir uma tarefa corriqueira porque permitiu que uma lembrança ruim, aleatória e desimportante, se transformasse em uma espécie de Times Square do inferno, cujos outdoors lhe ofuscaram os pensamentos com os piores desaforos possíveis. Os suspiros ao redor me fizeram pensar que eu muito provavelmente não era a única a ter vivido algo parecido.

O grande mérito da obra é, de fato, o de levar o espectador para dentro da cabeça da protagonista – tão alucinada e diversa que sobra carapuça para quem quiser vestir. O espectador que estiver disposto a encarar a montanha-russa de emoções da moça vive com ela a primeira experiência com o Rivotril, medicação quase tão imprescindível quanto uma escova de dentes na nécessaire dos brasileiros (foram 56,6 milhões de caixas deste e outros compostos do gênero vendidas só no ano passado), os efeitos colaterais da droga e a saga da procura por um bom atendimento, entre consultas de 15 minutos com médicos que sequer prestam atenção aos sintomas relatados – dei “check” nessa experiência também, e agradeci profundamente por não ter batido tanto a cabeça para encontrar um bom profissional e algum equilíbrio. Um turbilhão de melhoras e recaídas que põe na mesa a relação de uma geração inteira com os pais, com os afetos, com a terapia, com os remédios e, claro, com a tecnologia.

Por fim, com o perdão do spoiler, cabe ressaltar que história termina com a decisão da personagem de não tomar mais nenhum medicamento. A cena não chega a fazer uma apologia à rejeição destes compostos, mas, neste ponto, o livro (por razões óbvias) oferece mais nuances para um debate tão importante. A melhor síntese do assunto, acredito, foi a que ouvimos do psiquiatra Márcio Bernik, do Ambulatório de Ansiedade da Universidade de São Paulo – se, por um lado, há muita gente que precisa de medicação e não toma; por outro há muita gente entupida de remédio sem necessidade. O fiel desta delicada balança deve ser sempre um profissional. Por aqui, o resultado do combo tratamento, terapia, exercícios e a auto imposição de refletir frequentemente sobre o que, de fato, importa nesta vida, para além de tudo o que é ruído, está segurando bem a barra. No fim das contas, mais do que as risadas e a empatia pela divertida Dani, “Depois a Louca Sou Eu” pode oferecer ao público a experiência de alento que colhi do livro, do filme e, sem dúvidas, das conversas ao redor: a certeza de que essa paranoia não é só minha. Esse cansaço da própria cabeça é epidêmico, mas tem tratamento (alguns, a depender do caso, à distância de um botão de “desligar”). Há que se buscar sem preconceitos.

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